quarta-feira, janeiro 11, 2006

Endogamia no sistema universitário III

Post enviado por André Barata

Para resolver a endogamia universitária
-- Réplica à proposta do Eng. Cravinho


1. Sobre os malefícios da endogamia universitária, o problema reside não tanto na endogamia propriamente dita, quanto naquilo a que esta se presta, a saber, a ocasião para ganhos de poder (para quem está em posição disso) pelo facto de não terem sido prevenidas, nas instituições de ensino superior, possibilidades de interferências entre o plano da prestação de provas científicas e o plano do ingresso e progressão nas carreiras.

Não fora a existência efectiva destas possibilidades de interferência, e a endogamia, enquanto tendência, perderia grande parte do seu sentido. Esta, na verdade, mais não faz do que quotidianizar o que aquelas propiciam. E não é pouco o que assim se propicia: a garantia, por exemplo, de que os professores que podem orientar dissertações terão, por orientandos, alunos que os escolhem, não por razões essencialmente científicas, mas por acontecer estarem, na qualidade de docentes, na sua dependência. E isto pode contar favoravelmente para ambos, no que classificaria como uma espécie de compromisso prático: da parte do aluno/docente conta pelo facto de lhe importar, enquanto docente, convencer a hierarquia de que tem qualidades; da parte do professor que orienta conta, naturalmente, para o seu cv, mas também, caso esteja nessa disposição, para coarctar infidelidades científicas a quem, seja encarado como aluno ou como docente, pode valer sobretudo como seu prosélito.

2. Propor como o Eng. Cravinho que nenhuma universidade pública possa recrutar um seu recém-doutorado para o seu corpo docente não resolveria o problema da endogamia. Imagino facilmente presidentes de dois departamento ou de duas faculdades "amigas" a combinarem colocações temporárias de recém-doutorados, para, depois, passado o período de nojo, se recompor a situação, como se, ao fim e ao cabo, não mais do que fazer uma espécie de estágio se tratasse. Na verdade, "só" mais um adiamento, antes de se poder começar realmente a trabalhar. É claro que posso suspender esta desconfiança e supor que, num mundo bem intencionado, a solução proposta pelo Eng. Cravinho resolveria certamente o problema. Mas não é menos certo que traria outros problemas que eu não desejaria ter de enfrentar. Por exemplo, o simples facto de, uma vez obtido o grau de Doutor, um investigador se ver privado da possibilidade de trabalhar na instituição que o formou revela uma arbitrariedade inadmissível. Tanto mais quanto é razoável presumir que tendam a coincidir as suas preferências quanto à instituição de formação e quanto à instituição na qual fará, se chegar a fazer, a carreira. A arbitrariedade não está, pois, apenas em se eliminar um cenário possível, mas em se eliminar o preferível. A reforçar este ponto é preciso que se diga que os juízos de preferência fazem muito sentido num pequeno país como Portugal. Não é raro suceder, no nosso meio nacional, só uma instituição deter determinado campo científico, e mesmo quando há duas, três ou meia dúzia também não é raro só uma estar em condições de contratar formandos. Ora, seria, no mínimo, tolo pensar como aceitável que essa instituição se devesse obrigar a excluir das candidaturas para um lugar de docente e/ou investigador os seus melhores ex-alunos ou, para falar realmente de pessoas, aquelas em que mais investiram ao longo de anos, aquelas em que a cultura da escola é um valor, aquelas que se querem como discípulos e continuadores de uma obra em curso (o que não é, obviamente, para ser confundido com o proselitismo atrás denunciado). Importa, enfim, nestes, como noutros assuntos em que estão em causa! os modos de vida de pessoas, instituições, até mesmo de culturas, lembrar que o voluntarismo pode conduzir facilmente ao desastre. Como estas, que já me bastam, muitas outras me levam a declinar a bondade da proposta do Eng. Cravinho, não obstante, claro está, a bondade das suas intenções. Todos sabemos o que se reza nesta situação - de boas intenções...

3. Que fazer então? A solução para enfrentar o problema parece-me simples, desde que pensada com cautela. Sugiro que se adopte uma pequena legislação, cautelosa mas à mão da capacidade de iniciativa de qualquer instituição. Dessa pequena legislação, constam três pontos, que ponho à consideração:
I. A orientação das dissertações com vista à obtenção do grau de Mestre ou de Doutor não pode caber exclusivamente a docentes da instituição.

II. A frequência lectiva nos cursos de Mestrado e de Doutoramento não pode ser integralmente cumprida na instituição que confere o grau.
III. Os detentores de cargos executivos (Reitor, Vice-reitores, Presidentes de Faculdade e de Departamento) não podem, no exercício dos seus mandatos, desempenhar as funções de orientador de dissertação.
Talvez saiba a pouco, mas estou convencido de que seria o suficiente para limitar grandemente as possibilidades de interferência entre a avaliação científica de um formando e a gestão, digamos assim, das carreiras universitárias dos orientandos e dos orientadores. Como bónus, traria ainda uma maior circulação de pessoas na gestão universitária. Por fim, como última vantagem, o que proponho é, tanto quanto me aperceba, imediatamente exequível - diria que fazê-lo é mesmo apenas uma questão de vontade, hic et nunc.

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Talvez saiba a pouco?! Sabe a nada, a bem dizer... Todas esses aspectos que propõe já são prática corrente em muitas das nossas universidades - nem por isso saímos da mediania e da "apagada e vil tristeza"... De alguma forma, fica sempre tudo entre amigos e reduzido à escala lilliputiana, porque as intervenções externas nunca são verdadeiramente "externas"...

Mantenho: para grandes males, grandes remédios. Não percebo por que é que a limitação da endogamia pode aparecer como uma injustiça inaceitável, se já vigora em tantos países com consequências positivas e visíveis, consequências que sobrelevam, de longe, os eventuais incómodos de alguns académicos de mentalidade mais sedentária.
Por outro lado, esse argumento dos "modos de vida de pessoas, instituições, até mesmo de culturas" é muito conveniente e habitual entre nós, pouco habituados como estamos ao risco e ao empreendedorismo. Temendo o tal "desastre", preferimos ser os eternos pobrezinhos remediados... Assim não vamos lá!

E também não percebi lá muito bem como é que essas medidas que propõe poderão trazer o tal bónus de "uma maior circulação de pessoas na gestão universitária." Há aí qualquer coisa nesse raciocínio que me escapa...
DK

quarta-feira, janeiro 11, 2006 11:09:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

O problema é que em Portugal é muito difícil pôr qualquer coisa a funcionar. Por exemplo, o problema mencionado por Tito de a progressão na carreira estar associada a concursos e ao preenchimento de vagas, levaria a supôr que a hexogamia fosse favorecida: os candidatos a promoções deveriam concorrer a outras instituições para as obter. E qual foi o resultado? Precisamente o inverso.

quarta-feira, janeiro 11, 2006 3:18:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro A.,

Agradecendo os comentários, procurarei em seguida avançar um pouco:

1. Uma coisa é discutir o problema que João Cravinho apontou. Parece-me ter feito um bom diagnóstico, ainda que não possa dizer o mesmo, pelas razões que adiantei, da terapia proposta. Em síntese, as minhas razões assentam nisto: resolve-se a endogamia sim, mas anulando o que a sustém e não prescrevendo, como Cravinho faz, o seu contrário. Por isso mesmo, contrapropus o que escrevi. Diz-me, agora, que o que proponho é prática corrente em muitas das nossas universidades. Discordo de que o seja, mas, mais importante, era que me desse boas razões para denunciar endogamia nessas universidades.

2. Outra coisa é discutir o problema a que Tito Cardoso e Cunha se refere no final do seu post - o bloqueamento da progressão nas carreitas pela inexistência de vagas. É certo que, como TCC explicita, esse problema, que não é pouco sério, tem a sua raiz no facto de "a normal progressão na carreira" não ser pensada separadamente do "provimento de um lugar". Mas, se notar bem, esse não é o problema da endogamia. Mesmo que a progressão da carreira fosse determinada exclusivamente por avaliadores externos às instituições, manter-se-ia, ainda assim, exactamente o mesmo problema de não progressão nas carreiras. Reciprocamente, mesmo que a progressão nas carreiras deixasse de estar na dependência da abertura de concursos para uma vaga, manter-se-ia, ainda assim, exactamente o mesmo problema da endogamia. São dois problemas distintos, ainda que ambos envolvam carreiras, por um lado, e avaliação científica, por outro. É claro que ambos se apoiam um no outro - suponho que era esse o sentido das palavras de TCC - complicando o diagnóstico. Mas a querermos resolver bem a situação, em vez de pensar em "grandes remédios para grandes males", que é aliás uma das razões para a nossa situação sempre carente de novas salvações (sejam TGVs, sejam exogamias, sejam, perdoe-me a graça, Sebastiões), sugeria que encontrássemos a terapia justa para cada problema.

3. No que respeita ao "bónus" de que falava, explico-me melhor. Retirar a possibilidade de detentores de cargos executivos orientar teses é um bom motivo para que nenhum bom investigador queira eternizar-se nesses cargos. Conheço muitos nessa situação, não porque lhes tenha sido vedada a possibilidade de fazer orientações, mas por se empenharem nas suas funções tanto quanto na investigação. Sendo mais claro: estou a pensar em investigadores que lamentam não poderem dedicar mais tempo à investigação e à orientação de teses por estarem ocupados com cargos executivos, e estou a pensar, igualmente, em detentores de tais cargos que, assim, atalham formalidades ligadas a uma distante requisito de qualidades de investigador para a progressão nas suas carreiras.

4.Quanto à questão sobre os modos de vida de pessoas, instituições, até mesmo de culturas, dou-lhe um exemplo que não é da minha área: Há dois departamentos de linguística de reconhecida qualidade em Portugal. Talvez haja mais, mas suponhamos que só temos estes. Um deles segue a escola funcionalista, o outro segue a escola chomskiana. Não importa saber muito mais. Nas respectivas escolas, ambas com grande influência internacional, são muito apreciados. Suponho que salvaguardar a identidade da instituição, a sua cultura científica seja algo valioso. Isto que exemplifico com a Linguística é, em Portugal, uma necessidade em muitas áreas científicas, especialmente naquelas em que se produz realmente investigação de qualidade.

5.A terminar, eu não diria que "O problema é que em Portugal é muito difícil pôr qualquer coisa a funcionar". Diria antes que o problema é que em Portugal é muito difícil continuar alguma coisa que se comece.

quarta-feira, janeiro 11, 2006 4:46:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro pj,

respondendo à questão que me coloca directamente: é razoável crer que os detentores de cargos executivos tenham menos dificuldades, se comparados com colegas da mesma valia científica mas que não exercem essas funções, em "arranjar" colocação para os seus orientados na sua instituição.

No que respeita aos restantes comentários que me endereça, penso já ter dado resposta.

Ab

quarta-feira, janeiro 11, 2006 4:57:00 da tarde  
Blogger Jorge M. Rosa said...

Já que tenho intervindo noutros posts sobre o mesmo assunto, sinto que não poderia deixar de comentar também este.
Concordo absolutamente com o diagnóstico do André Barata, de que destaco especialmente o ponto 2., e as propostas de solução parecem-me bastante pertinentes (ainda que só tenham efeitos a médio prazo, mas era justamente também isso que eu argumentava). Subscrevo ainda a ideia de que certos departamentos têm a sua «cultura» própria - o exemplo da linguística é esclarecedor -, o que, se incentiva a alguma endogamia, nada tem a ver com aquilo que nela é criticável. O mesmo, acrescentaria, quando há numa área um ou dois departamentos em todo o país que detêm um prestígio acima de todos os outros: promover, através de leis anti-endogamia, a «migração» dos seus recém-doutorados para «equilibrar» a qualidade de outros departamentos é saudável; contudo, impedir que essa qualidade se perpetue no próprio departamento é um tiro no pé!

Abraços,
Jorge Rosa

quarta-feira, janeiro 11, 2006 6:57:00 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home