Outra perspectiva das relações entre Técnico e Ministério da Ciência
O Jorge Rosa, bolseiro e doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, responde ao post sobre O Técnico, o Ministério da Ciência e a endogamia assim:
É verdade, mas a verdade tem por vezes diversos lados. Se não vejamos:
- é o Técnico que tem mais doutorandos e pós-doutorandos nos Estados Unidos (curiosamente o país onde são mais restritas as regulamentações anti-endogamia universitária, mas não se pode comparar a escala do país com a nossa, como se verá abaixo);
- é o Técnico que tem mais anos de prática de orçamentação de projectos de investigação (é daí que vem toda aquela história das «Despesas Gerais» e das «Taxas de Imputação»);
- é o Técnico que tem uma maior tradição de ligação das universidades às empresas.
E a lista poderia continuar...
Sem dúvida que está na altura de dar outras vozes à FCT, mas tenho dúvidas quanto ao que seria do Ministério da Ciência e em particular da FCT se não fosse a cultura de rigor introduzida pelo Técnico.
Quanto ao artigo do João Cravinho, é por enquanto uma utopia (para não usar outro termo muito menos eufemístico). Não há suficiente mobilidade em Portugal para alguém fazer o doutoramento em Lisboa, enquanto está a pagar uma casa, e de repente, terminado o doutoramento, esperar que abra de imediato um concurso no Porto ou na Covilhã (mas qual concurso, se as vagas estão praticamente congeladas???), e mudar-se de armas e bagagens ou então sustentar duas rendas ou renda+deslocações. E já que a tradição das leis anti-endogamia vem dos Estados Unidos, compare-se um pouco a situação com este país. São 50 estados, quase 300 milhões de habitantes, e um número gigantesco de universidades e de alunos. Só o campus de Berkeley da Universidade da Califórnia (há mais 9 campus, para além de outras universidades neste estado) tem mais de 30 mil alunos de diversos graus. Um recém-doutorado em Berkeley pode ver que vagas há em todo o país -- há sempre boas probabilidades de encontrar pelo menos alguma na sua área -- e, por exemplo, ser contratado como professor auxiliar na Pensilvânia (já agora, esta é uma situação verídica). Em cerca de um mês pode mudar-se de armas e bagagens para um local a cerca de 4000 quilómetros. Alguém está a pensar candidatar-se a uma vaga em Moscovo?
Voltando à realidade portuguesa, tome-se este outro exemplo. Imagine-se dois doutorandos, inscritos na mesma universidade pública; um está contratado por uma privada ou por um politécnico, ou outro é assistente nessa universidade. Terminados os doutoramentos, o que está na privada/politécnico pode continuar onde está, pois não é a instituição onde obteve o grau; o que está na pública vai para o «olho
da rua» porque a lei assim o dita. Assim, quem quer ser contratado para uma pública?
Na actual situação, uma lei anti-endogamia iria simplesmente servir para desincentivar as inscrições em doutoramentos. Enquanto não houver uma massa crítica de universidades, graus, etc., mais incentivos a doutoramentos lá fora, estabilidade financeira para quem quer obter graus académicos (por exemplo um subsídio de desemprego a ex-bolseiros enquanto procuram novo emprego num país em que iniciar a vida activa depois dos 30 é um tiro no escuro), e muito, mas mesmo muito mais, a endogamia é um mal menor. Esperemos entretanto que outros mecanismos vão evitando o que de nefasto este possa ter.
«Não custa[ria] um tostão ao Estado», diz o João Cravinho, que não parece estar disposto a acrescentar mais nenhum artigo a essa lei. Só se for numa Neverland ou numa Erewhon qualquer!!!
E já agora, alguém sabe quantos professores do Técnico fizeram o doutoramento nas outras faculdades de ciências portuguesas (i. e., nem no Técnico nem no estrangeiro)?
7 Comments:
"Esperemos entretanto que outros mecanismos vão evitando o que de nefasto este possa ter."
Compreendo, em parte, os argumentos do Jorge, mas esta sua afirmação é uma contradição. E parece-me claramente que os mecanismos que propõe são ainda mais utópicos do que os critica... Gostaria de saber como é possível criar massa crítica nas universidades enquanto se continuar a permitir aos catedráticos e directores de departamento contratarem quase exclusivamente protegés e indivíduos que pensam como eles, em concursos "públicos" adulterados de forma sistemática(i.e quando ainda havia concursos e contratações...)
Quanto aos doutoramentos feitos em universidades estrangeiras, posso garantir-lhe que em determinadas áreas mais retrógadas - como as Humanidades - isso é o primeiro passo para se aceder à condição de "intocável". É geralmente um caminho sem retorno...
Dar "subsídio de desemprego a ex-bolseiros enquanto procuram novo emprego"?! Como, num país em que o próprio número de bolsas de investigação está em declínio e a FCT já nem sequer tem dinheiro para pagar o montante das propinas às universidades? (na minha Faculdade o pagamento já vai pelo menos com 2 anos de atraso!). Convenhamos que não é uma proposta muito realista...
Quanto à criação de condições de mobilidade, e se encararmos o problema como um conflito de interesses, o que valerá mais? O eventual desconforto de meia dúzia de académicos que têm de mudar de casa em início de carreira (como se isso não acontecesse noutras profissões!), ou o aumento de qualidade de um bem que é de todos (e pago por todos), a educação superior? Parece-me é que a nossa corporação universitária se habituou demasiado ao sedentarismo e ao comodismo, não percebendo que, com isso, cavou a própria sepultura e comprometeu o futuro das novas gerações... Não será já tempo de se olharem ao espelho e fazerem um exame de consciência com um mínimo de honestidade?
Eu continua a achar, como João Cravinho, que a endogamia não é um mal menor, mas sim a raíz de todos os males das nossas universidades, descredibilizando-as e minando os seus alicerces. É possível - é imperioso - combatê-la, se houver coragem política para abater algumas linhagens de "perus" que tomaram de assalto as universidades públicas, como se estas fossem coutadas privadas de senhores medievais... Não perceber isto é continuar a fugir com o rabo à seringa, passe a expressão, e a adiar para sempre uma terapêutica que vai inevitavelmente tornar-se mais dolorosa e complicada com o agravamento do estado do doente...
DK
Não me parece que haja qualquer contradição, até porque eu não estou propriamente a propor nenhuns mecanismos, e sim a antecipar as consequências desses eventuais mecanismos.
Parece-me, isso sim, que qualquer lei anti-endogamia tão cabal quanto a que é imaginada pelo João Cravinho é simplesmente impensável para já e continuará a ser impensável se não for devidamente sustentada por todo um «pacote» de outras leis (e portanto nunca seriam só dois artigos, muito menos ESSES dois artigos) nem pela criação de outras condições (e logo, custando pelo menos alguns «tostões» ao Estado).
Por exemplo...
- maior transparência nos concursos públicos, com comissões externas que avaliem o mérito dos candidatos (pois, mas as comissões externas não trabalham de graça, logo... mais uma proposta utópica);
- mais doutoramentos no estrangeiro (diga-se o que se disser, isso é anti-endogamia por inerência, e é das melhores formas de trazer ar fresco aos departamentos, a todos os níveis). Quanto mais banalizados (como é o caso do Técnico), menos haverá esse mito de intocabilidade. E contra mim falo, pois estou a fazer o doutoramento por cá, apesar de uma curta estadia nos EUA;
- na pior das hipóteses, instituir sistemas mais moderados e progressivos (em prazos que talvez tenham de ir até aos 15 ou 20 anos) de combate à endogamia, por exemplo um sistema de contratação por quotas, i. e., com percentagens mínimas e máximas de contratações intra e extra-universidade;
- ter em conta o caso especial de algumas áreas (ciências humanas, p. ex., mas de certeza haverá outras nas ciências mais duras), em que ainda há universidades que, por falta dessa massa crítica nem que seja porque as áreas são recentes, praticamente detêm o monopólio dos doutoramentos atribuídos e, logo, uma quase esmagadora maioria na procura de graus acima da licenciatura;
- ah, e quanto aos subsídios de desemprego, não são - nem têm de ser! - da responsabilidade da FCT, como é óbvio, e sim do ministério respectivo. Um bolseiro é um trabalhador como outro qualquer (salvaguardadas as diferenças: só recebe 12 «salários» por ano, uma desvantagem; o subsídio não conta para efeitos de IRS, uma vantagem). São 4 anos de contrato, caramba! E depois disso?
Saudações,
Jorge Rosa
"São 4 anos de contrato, caramba! E depois disso?"
Depois disso, só nos resta mesmo a emigração (de preferência para fora da Europa), o que até não é necessariamente negativo. Em Portugal, emprego qualificado para doutorados nos próximos anos - décadas? - é uma autêntica miragem, não tenhamos ilusões... E não há subsídio de desemprego que nos valha!
DK
Quanto a isso, sem dúvida... embora, mais uma vez, seja algo mais fácil para o pessoal das ciências duras, onde a língua é um obstáculo muito menor e a cultura é muito mais universal. Mais depressa se consegue entrar para um laboratório ou para um departamento de física de uma universidade estrangeira do que para algo equivalente em áreas «culturais», onde o peso do legado «nacional» é muito maior. Mas não é impossível.
Não creio que a medida preconizada por João Cravinho seja blindada. É perfeitamente contornável: tu recebes o dr. x, e eu recebo o dr. y; e findo prazo retornam à base. A mudança que permitiria terminar com a endogamia exige sobretudo que as pessoas mudem, e isso leva muito tempo.
De acordo. Tendo em conta a "típica" esperteza saloia à portuguesa, uma lei contra a endogamia seria facilmente contornada e esvaziada de efeitos práticos através de esquemas como os que descreve. Mas qual é a alternativa? Esperar que as mentalidades mudem espontânea e miraculosamente? É certo que as mentalidades académicas não se mudam por decreto, mas, por outro lado, sem medidas concretas impostas de fora, poderemos esperar que mudem algum dia?... (o melhor é comprarmos um bom sofá e sentarmo-nos à espera. Palpita-me que vamos ter muito que esperar.)
DK
Não! Eu não disse que devemos esperar sentados num sofá que as coisas mudem. Mas parece-me por exemplo mais sensato estabelecer a obrigatoriedade de concurso para todos os ingressos na carreira, e velar para que os concursos sejam verdadeiramente públicos, abertos e plurais - como alguém sugeria aqui, por ex., mediante o estabelecimento de comissões externas que integrassem os júris, ou outros meios porventura mais eficazes. E, é claro, se a Justiça não fosse tão cara, e os tribunais portugueses funcionassem com um pouco mais de celeridade, também não seria pior...
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