Morreu M. S. Lourenço
Foi em pleno PREC, entre o Verão quente de 1975 e o 25 de Novembro,
que Manuel Lourenço começou a leccionar na Faculdade de
Letras. Vinha da Califórnia e o seu visual era o de um hippie. Parecia
o John Lennon de Yoko Ono, de barba e cabelo compridos, com
óculos de aros redondos. Vestia uma camisola interior branca, jeans
rotos e remendados, e trazia dependurado de um ombro uma sacola
de pano. No meio de um ambiente revolucionário de tintas marxistas
e de escaramuças entre UECs e MRPPs, Manuel Lourenço era a
imagem rediviva de Woodstock.
Sempre assíduo e pontual, numa época em que os professores
faltavam imenso, e quando vinham era geralmente com muito atraso,
Manuel Lourenço dava 3 vezes por semana a sua aula de lógica de
uma hora. Trazia sempre a matéria escrita em 3 a 6 folhas A4, que
copiava para o quadro negro. Nós copiávamos as fórmulas atrás de
fórmulas que ele ia escrevendo a giz com a mão direita e apagando
com a esponja na mão esquerda. Ao mesmo tempo ia ditando em
voz alta aquilo que escrevia. Não havia tempo para conversas revolucionárias
ou de outro tipo, como era usual na época, era apenas
a lógica matemática. No final da aula cedia-nos as folhas A4 para
fotocopiarmos. São essas fotocópias que mandei encadernar sumptuosamente
depois e que constituem hoje um dos meus tesouros
bibliográficos. O primeiro volume, o curso de 75-76, compreende
169 páginas e o segundo, o de 76-77, 269 páginas. Coloco aqui uma
imagem da metade superior de uma folha do 1. volume.
(ver pdf linkado no final do texto)
Se a cadeira tinha ao princípio muitos alunos, depressa deixou de ter.
Passadas algumas aulas ficámos reduzidos a um núcleo de dez pessoas.
Penso que fomos menos de meia dúzia a terminar Lógica II. A
aridez e o esforço eram demasiada areia para as almas revolucioná-
rias dos estudantes. Foi logo no ano seguinte que houve uma revolta.
A cadeira de Lógica I passou a obrigatória e os estudantes eram
tantos que era leccionada no Anfiteatro I. Aí rejeitaram em peso a
lógica capitalista que Manuel Lourenço lhes queria ensinar; desejavam
sim uma lógica revolucionária. O comentário de Lourenço à
reivindicação massiva dos alunos foi de que a lógica ensinada na
União Soviética era a mesma dada nas universidades americanas.
Creio que rapidamente deixou de ensinar essa disciplina obrigatória.
(...)
Ora foi logo no decorrer de 1976 que começou a correr entre os
alunos de Lógica I o poema de M. S. Lourenço, publicado na revista
Colóquio Letras de Janeiro desse ano, intitulado “O Sutra de Patricia
Rimpoche”. Cito aqui alguns versos que à época nos entravam
pela alma dentro e faziam de pelo menos alguns de nós autênticos
admiradores do nosso professor de lógica.
(...)
O choque da inspiração global,
A descarga contínua da corrente,
Rasga o cérebro em carne viva.
Instantânea, pois, a descoberta.
Mas o milagre é cagar de manhã,
Espontâneo, e limpar o cu à relva.
Tal como os dois últimos versos citados tinham o condão de se
incrustar indelevelmente na memória, toda a poesia encarnava o
espírito Siddahrta que à época fascinava os jovens. Tinha 20 anos
e esta junção de lógica matemática e de poesia era verdadeiramente
inebriante. Fazendo lógica, treinando cálculo proposicional,
estudando os teoremas de Gödel, e lendo poesia obtinha-se uma
sensação de eleito, qual jovem admitido na escola em que se aprendia
O Jogo das Pérolas de Vidro, livro de Herman Hesse que então
circulava entre alguns estudantes de filosofia como segredo e sinal
da mais alta exclusividade intelectual.
Retirado do capítulo "Lógica e Poesia com M. S. Lourenço"
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